Monday, June 22, 2009

pontos cegos / blind spots

comecei e não consigo parar de ler o excelente “Carradas de razões”, obra de Otavio Leonídio sobre Lucio Costa. Como bom modernista que sou a vida e a obra do Dr. Lucio são fundamentais para se entender o Brasil de hoje, na arquitetura, no urbanismo e na questão do patrimônio. E o livro de Leonídio (resultado de sua tese de doutorado) é de longe o melhor texto que já li sobre aquele que foi o mentor intelectual da arquitetura brasileira do século XX. Indo direto nas fontes primárias como bom trabalho de historiografia que é, o livro traz a tona componentes essenciais para se montar (e desmontar) nossas narrativas da modernidade.

mas o que me chamou muito a atenção, saindo um pouco da questão arquitetônica, foi a linguagem tantas vezes pejorativa e preconceituosa usada pelos arquitetos no início do século passado. Marianno Filho, médico e mentor do neo-colonial, usa a expressão “judaísmo internacional” para se referir às vanguardas européias (ou talvez numa alusão direta a Gregori Warchavchik). Católico fervoroso, Marianno Filho confunde a idéia de nação com a religião majoritária no país, esquecendo-se que desde 1889 estado e igreja estavam devidamente separados no Brasil.

ainda mais estarrecedor é ler o próprio Lucio, intelectual refinado e elegante escrevendo em 1928 que: “toda arquitetura é uma questão de raça. Enquanto nosso povo for esta coisa exótica que vemos pelas ruas a nossa arquitetura será forçosamente uma coisa exótica. Não é essa meia dúzia que viaja e se veste na rue de La Paix, mas essa mutidão anônima que toma trens da central e da Leopoldina, gente de caras lívidas, que nos envergonha por toda parte.”

agora sou eu quem fica envergonhado de ter como herói arquitetônico o mesmo Lucio Costa que escreveu as linhas acima. Pode-se justificar que isso veio do alto de seus 26 anos de idade ou que, na época, ainda estava ligado ao neo-colonial de Marianno Filho e portanto na contra-mão há história. É fácil demonizar Marianno Filho e seu combate quixotesco contra a arquitetura moderna mas o fato é que são ambos argumentos racistas e preconceituosos.

o que me faz perguntar quais seriam os argumentos, hoje dados como aceitáveis, que causarão náusea a nossos leitores daqui a meio século ou século inteiro?

quais são hoje nossos pontos cegos?



I started and I can’t stop reading the excellent “Carradas de Razão”, by Otavio Leonídio about the work of Lucio Costa. Being myself a confessed modernist, Dr. Lucio is fundamental to understand contemporary Brazilian architecture, urbanism and preservation. And Leonídio’s book (his phd dissertation) is by far the best text I have read on the man who was the intellectual mentor of Brazilian 20th century architecture. Based on primary sources as it should be, the book brings to light many components that are essential to assemble (and disassemble) our narratives of modernity.


but what called my attention very, if I may leave architecture aside for a moment, was the pejorative and prejudiced language used by the architects at the beginning of the last century. Marianno Filho, a medical doctor who was the mentor of the neo-colonial movement in Brazil, uses the expression “international Judaism” to referring to the European avant-gardes (or perhaps a direct attack on Gregori Warchavchik). A devoted catholic, Marianno Filho confuses the idea of nation with its main religion, deliberately forgetting that since 1889 state and church they were duly separate in Brazil.

even more astonishing it is to read the Lucio Costa himself, a refined and elegant intellectual, writing in 1928 that: “all architecture is a matter of race. As long as our people are this exotic thing that we see in the streets our architecture will be forcibly an exotic thing. It is not about half dozen that travel and dresses at rue de la Paix, but the anonymous crowd that uses the trains, people of livid faces that are a shame to us all.”

now I am the one ashamed of those words written by Costa in 1928. One might say that he was only 26 years old and still affiliated with the neo-colonial movement of Marianno Filho and therefore lost in history. It is easy to demonize Marianno Filho and his frivolous combat against modern architecture but the fact is that both arguments are racist and filled with prejudice.

it is hard to believe that Costa, such a hero to Brazilian architects, could be so wrong. But the question we need to ask is what kind of arguments, acceptable today, will make the readers of the next century sick to their stomachs?

which are our blind spots?

12 comments:

Henrique Gonçalves said...

Nossa, é pra preocupar mesmo!
O pior desses pontos cegos é que eles sempre são gigantescos e estão na nossa cara!
hehehe

Gabriel Velloso said...

Hoje a violência instalada nos morros de vilas e favelas, obriga os projetos a adotar um partido que às vezes não gera integração e nem a boa apropriação, o medo do vandalismo ou que as intervenções fortaleçam uma ocupação indevida faz com que as intervenções nos aglomerados sejam apenas pavimentações. Isso para mim é um ponto cego. Como dizia Lucio Costa “urbanizar consiste em levar um pouco da cidade”, e a cidade alem de ser formada por ruas e saneamento é também formada por espaços de convivência e apoio ao cidadão.

Marcelo Palhares Santiago said...

Ponto cego é o que saiu da prancheta dele. Ao mesmo tempo que defende os valores da cidade tradicional num bom urbanismo, ele cria a 'barra'.

Max said...

conhece um texto do Monteiro Lobato em que ele inventa um presidente negro para os Estados Unidos? É impressionantemente preconceituoso. Para mim, é o cúmulo do "ponto cego".

Fernando L Lara said...

Max,

Quando eu leio sitio para a Helena eu "edito" as partes sobre a Nastacia de tao preconceituosas.

Marcelo, a barra é Brasilia sem o gabarito, ou seja, mais aberta aos empreendedores

felipe botelho said...

Fernando,
Como bem dise o Yann Arthus-Bertrand na palestra ao TED, "nós não queremos acreditar no que sabemos". E acho que é isso. Não acreditamos no que vemos porque não queremos.

Não vejo um ou outro ponto cegos, vejo uma cegueira generalizada, em todos os sentidos.

Bom, dentro do ambito da arquitetura, a cegueira se traduz no modo como nós, homo-sapiens do séc XXI vivemos, habitamos. O ponto cego, está nessa nossa maneira egoísta e vaidosa de morar e fazermos muito pouco para mudar isso.

Ao discutir movimentos e estilos arquitetônicos, personalidades, textos, somos todos cegos. De certa forma, acho que ficamos viciados nessa cegueira.

O link da palestra é esse abaixo

http://www.ted.com/talks/yann_arthus_bertrand_captures_fragile_earth_in_wide_angle.html

e o link do documentário HOME no youtube é esse.

http://www.youtube.com/watch?v=tCVqx2b-c7U

Abraços

gabriel said...

caro professor fernando, permita-me uma leve crítica: creio que utilizar-se de uma expressão como "estar na contramão da história" é por si só anti-histórica!

lucio costa sempre foi vanguarda arquitetônica (mesmo na velhice) mas sempre foi também um "elegante" conservador... que curiosamente relacionou-se menos com o poder constituído que os arquitetos do partidão (mas isto é outra história)

acho perigoso promover qualquer tipo de juízo de valor a respeito de eventos históricos (aquela coisa: história é ciência, memória é outra coisa, não é história...)

mas de qualquer forma, sempre cabe lembrar aquela famosa menção de Costa à Brasília como sua "bastilha", ao ver o povo se apropriando da rodoviária e de outros espaços que ele tinha associado às elites.

enfim: alguém citou o novo filme da moda, Home. A quem interessar possa: produzi uma singela e humilde crítica contundente sobre ele aqui: http://notasurbanas.blogsome.com/2009/06/15/home-e-koyaanisqatsi/

Fernando L Lara said...

Gabriel,

não acho que eu tenha feito nenhum juízo de valor sobre a obra ou a pessoa de Lucio Costa, muito pelo contrário, me assustou o fato de homem tão iluminado ter sido em algum momento tão preconceituoso.

o Felipe foi mais direto ao ponto ao chamar a atenção para a sustentabilidade como nosso ponto cego da atualidade.

outro ponto cego importante é a ausência de alternativa entre a criação de desigualdades do capitalismo e a criação de desigualdades do comunismo. Cuidado pra não jogar fora o bebê junto com a água do banho, existe uma distância enorme entre Fnac e Gucci e Haliburton e Exxon.

mas enfim, qual seria o seu ponto cego?

gabriel said...

é justamente este tipo de comparação que deveríamos evitar: será mesmo que são empresas tão diferentes assim? a fnac vive do impulso consumista do cidadão de classe média. a gucci vive da criação de falsas necessidades e do fetichismo da mercadoria (evidentemente estou usando o conceito de forma deturpada de como marx o definiu, mas acho que dá pra entender...).

às vezes, em certo sentido, empresas que investem em pesquisa tecnológica (não é o caso da exxon) são até mais "limpas" que gucci e fnac.

ponto cego em minha opinião? superar a sociedade do espetáculo que cria coisas como Home!

o capitalismo e a sociedade do consumo são os maiores responsáveis por termos chegado a níveis tão alarmantes de esgotamento de recursos naturais (aí incluídos, evidentemente, os regimes de capitalismo de estado extremamente poluentes que existiram no leste europeu). No entanto, é justamente o grande capital internacional que cria bizarrices como Home, deturpando e tomando para si décadas de críticas...

gabriel said...

com relação ao lucio costa: será que não era mesmo um homem de sua época? (o preconceito era marca de uma época!)

eça de queirós era colonialista. machado de assis era censor de teatro! até borges, dizem, tinha lá seus preconceitos... enfim, quando falei sobre "anti-historicidade" era mais ou menos isso.

Fernando L Lara said...

pois eh Gabriel,

eu nao vejo alternativa alem de um capitalismo que sirva para gerar riquezas e um estado que evite a concentracao excessiva destas mesmas riquezas.

eu acho que a degradacao do meio ambiente comecou antes do capitalismo industrial (ver Jared Diamond) mas nao ha duvida de que esta destruicao foi acelerada exponencialmente pela modernizacao do seculo XX, seja na versao capitalista, seja na versao comunista.

a questao nao eh tanto apontar os pontos cegos do dr. Lucio, Machado ou Borges mas jogar alguma luz sobre os nossos pontos cegos hoje?

ou seria iesta uma tarefa impossivel por principio? Acredito que nao. Abusando de Nelson Rodrigues, quais seriam as unanimidades burras desse comeco de seculo?

Danilo said...

Oi Fernando,

Estive (acho que ainda estou) imerso em tanto trabalho que deixei o cybermundo meio de lado por um tempo. Eu mal tenho conseguido atualizar a mdc! Só nos finais de semana!
Bom, passei por aqui e confesso que me deu pânico do tanto de posts que perdi. Acho que não vou conseguir ler tudo.
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Interessante a questão do "ponto cego". Na verdade, devo lhe confessar que a passagem não me surpreende: a arquitetura moderna brasileira foi construída em grande parte por aristocratas (acho que já falei disso recentemente). Lucio Costa, filho de almirante, não era exceção. Não acho que a arquitetura ou o urbanismo de Lucio tenham jamais deixado de lado um certo elitismo.
Num extremo estão as diretrizes mítico-direitistas de Francisco Campos ao reforçar a idéia do mito nacional, do homem excepcional, como estratégias para dominar o povo. No meio, está na memória do Plano Piloto, em que a área da rodoviária foi definida como uma mistura de "Champs-Elisées" com "Picadilly Circus". No outro extremo, o de hoje, está a Praça da Soberania, o Centro Administrativo de MG...
Uma coisa interessante de se fazer é comparar as versões originais dos textos de Lucio Costa com os textos publicados no registro de uma vivencia. Ele era um polemista bastante agressivo, e tirou suas pedradas não tanto, digamos, elegantes, da sua coletânea... Veja o último parágrafo da resposta a Max Bill, por exemplo (oportunidade perdida). Ele diz mais ou menos que o suíço não entende nada de arquitetura porque descende de relojoeiros, enquanto nós descendemos de fabricantes de igrejas...
Na verdade, acho que a questão é: quando é que nós, arquitetos, não fomos elitistas, racistas, preconceituosos? Poucas vezes.
Digo mais: quantos arquitetos negros estão entre os Pritzker? Nenhum. Quantas mulheres há entre os laureados? Só uma...
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No meu entendimento, José Marianno Filho tem textos historiográficos bastante interessantes sobre o período colonial. Ele foi demonizado pela historiografia moderna, mas muitas das mentiras contadas por ela - como a própria construção da figura do Aleijadinho - já haviam sido desmontadas ali. Acho que vale a leitura.
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Já ouvi por aí que nossos pontos cegos estariam em coisas como criar bichos para o abate. No campo da arquitetura, acho que ela inteira é um campo cego atualmente. Ainda estamos na "torre de marfim" e nem nos tocamos...
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Enfim. Mais uma vez parabéns pelo blog e pelas andanças incansáveis pelo mundo. Que inveja! (da boa, não da ruim)