Sunday, March 25, 2007

de desertos e labirintos

A arquitetura se faz na busca do homem de estabelecer referências no espaço. Necessidade básica da humanidade, a referência espacial vem se juntar como estrutura à referência da linguagem e constituir todo o alicerce da experiência humana. Desde os primeiros tempos o homem tentou fundar no espaço um espelho de sua organização social. Ítalo Calvino, em “As cidades invisíveis”, disseca estes pequenos fragmentos da experiência urbana manipulando um a um os conceitos de sociedade materializados pelo homem no seu habitat natural, a cidade.

Em um dos pequenos textos, Calvino nos conta de uma cidade que vivia em obras, escondida por tapumes e andaimes, e cujos habitantes temiam tanto a destruição que nunca terminavam a construção. Se indagados sobre o sentido de tal infindável obra, se indagados sobre o plano que os orientava, sobre o projeto, nada respondiam. Se diziam muito ocupados e que se esperasse o fim da jornada de trabalho para obter a resposta. “O trabalho cessa ao por do sol. A noite cai sobre os canteiros de obras. É uma noite estrelada. - Eis o projeto - dizem.”

Mas ainda antes de espelhar na superfície terrena uma complexa ordem cósmica, enquanto investigavam e inventavam tal ordem celeste, o homem marcou no espaço suas referências, seu território, e a partir daí desenvolveu todo um sistema espacial que se complicava à medida em que também se desenvolviam suas regras sociais. A partir então da arquitetura como referência, tomemos as duas imagens literárias de Borges como extremos conceituais desta arquitetura. O Deserto, a ausência de referência, a pré-arquiteutra; e o Labirinto, o excesso de referências, a pós-arquitetura.

Na periferia das grandes cidades brasileiras, o deserto toca o labirinto. No inacabado que já é ruína dois estados temporais se encontram. Não há dimensão temporal, apenas o infinitésimo instante que separa passado e futuro. Duas realidades se encontram. No deserto, o significado está no solo, na sobreposição das camadas de tempos e espaços passados, silenciosamente decantados e residentes à espera de alguém que os escave e decifre. No labirinto, o significado está na atmosfera, na virtualidade vertiginosa do mundo da redundância, do excesso de referência, da fantasia obscena da televisão, flashs de sons e imagens seqüenciais. Na periferia das grandes cidades brasileira o deserto de Borges encontra o Labirinto de Borges, num movimento contínuo e circular, “que tercamente se bifurca en otro...” e constrói um sentido próprio, de identidades e alteridades, de simplicidade e complexidade, de rastros no solo e fantasias virtuais. Um encontro entre instantes distintos do primário instinto de comer com o impulso frenético de consumo, um satisfazendo e gerando o outro. Fim da linearidade, não há portas que forçar nem escadas que subir neste labirinto desértico sob o sol escaldante que reflete tijolos crus e antenas parabólicas. Tudo ao mesmo tempo agora, o espaço é só uma superfície entre qualquer passado e qualquer futuro.


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