saturado pela discussão superficial e sensacionalista da mídia você neste parágrafo está pensando que este é mais um texto eco-chato sobre o modelo de ocupação das encostas, a política habitacional ou a incompetência do poder público.
nada disto. Como eu acabei de voltar de Cingapura, gasto hoje este espaço para refletir sobre os limites entre o poder de intervenção do estado e os direitos individuais.
uma das coisas que mais me assustou em Cingapura foram arquitetos e sociólogos, todos professores universitários com pós-graduação e experiência internacional, defendendo o modelo de democracia de Cingapura. Para quem não conhece, Cingapura tem partido único, imprensa controlada e um governo que regula e policia absolutamente tudo. Os casos mais famosos são os de chicotadas públicas por cuspir na rua ou multa por não dar descarga nos banheiros públicos. Numa outra conversa assuntos mais mundanos de arquitetura perguntei ao presidente do Instituto de Arquitetos de Cingapura se eles não tinham problemas de dilatação ao usar cerâmicas nas fachadas, caso típico de cidades tropicais como nós bem sabemos. A resposta dele: o código de obras especifica quais cerâmicas e quais argamassas podem ser usadas para cada tipo de edifício dependendo do tipo de estrutura, altura e exposição solar.
agora que nome damos a este tipo de relação público - privado? Capitalismo super-regulado? Fascismo pragmático? Exagero de zelo pelo bem comum? Mega big brother? Cingapura recebe tanta chuva quanto Manaus, 70% mais do que a media do sudeste brasileiro e o nível de planejamento é tanto que os arquitetos não estão nem um pouco preocupados com mortes decorrentes de enchentes e desabamentos. Estão preocupados em garantir que uma cerâmica 10x10 não despenque do 18o. andar.
a pergunta que andamos evitando no caso da tragédia da região serrana é que tipo relação com o estado nós queremos. Estamos dispostos a apoiar um estado que remova milhares de pessoas das regiões de risco e cobre impostos suficientes para prover infra-estrutura para estes mesmos milhares? Ou preferimos um estado que apenas policie e deixe para o mercado oferecer habitação de qualidade. Neste caso, estamos dispostos a pagar um salário mínimo de R$ 1500.00 que garanta a todos a possibilidade de pagar R$ 600.00 de prestação ou aluguel? Estamos dispostos a apoiar um estado (ou um CREA ou um CAU) que efetivamente fiscalize os afastamentos, áreas totais e taxas de permeabilidade?
nós que trabalhamos todo dia com a aprovação de edifícios e loteamentos estamos dispostos a defender as leis que os regulam diante dos clientes que perguntam se dá pra aprovar assim ou assado? Estamos dispostos a ir lá com a policia explicar os riscos da ocupação e exercer a interdição se necessário? Como, se não damos conta nem de explicar na reunião de condomínio que a varanda o pilotis não podem ser fechados com blindex.
o exemplo de Cingapura me parece sim extremo e autoritário, mas o nosso modelo de jeitinho para os amigos e leis para os inimigos está falido, enterrado debaixo de toneladas de lama em Ilha Grande, Angra, Teresópolis, Friburgo e onde mais chover. Estaremos dispostos a assumir responsabilidade coletiva por um modelo de espaço construído que não implique riscos de destruição em massa.
10 comments:
Fernando, tomei a liberdade de partilhar teu texto no Facebook. Fundamental, contundente e cristalino. Como este semestre estou escalada pra dar aula de Urbanismo e Meio ambiente na FAU, posso usar seu post como base para uma reflexão e discussão em sala de aula?
Abraços.
claro que pode Ana Paula. Fico aguardando o seu post a respeito no Urbanamente.
abracos,
F.
Amei seu texto! Posso compartilhar??
Beijos
Carol Velho
pode sim Carol, a vontade
Prezado Fernando, acabei de conhecer seu blog, por conta da minha filha, estudante de arquitetura, na FAU. Coordeno projetos de EJA e hoje especialmente, estudantes de uma turma de EM no projac, estudavam com a professora da turma sobre efeito estufa e buraco na camada de ozônio. Claro que o assunto desembocou calorosamente para os terríveis problemas vivenciados na Serra! Seu texto poderá contribuir e muito nas reflexões desses trabalhadores-estudantes, há tanto tempo afastados da escola. Posso encaminhar para a professora e turma? Abraços,AR.
fique a vontade para usa o texto como quiser Ana.
este outro texto, de um ano atrás, continua válido como nunca e é mais didático, eu acho:
http://parededemeia.blogspot.com/2010/07/o-porque-das-enchentes.html
e volte sempre pra continuarmos essas conversas,
F.
Coloquei lá no meu blog também!
Vc foi a Cingapura? O que achou de lá? Poderia comentar algo para nós.
Abs
Gostei do seu texto,
Queria acrescentar uns pensamentos.
Primeiro, existe o meio termo entre Cingapura e os Estados Unidos.
O caso que eu mais conheço: a Bélgica.
Não tem multa para não fazer descarga no banheiro público, nem para atravessar a rua num lugar não permitido (quase).
O governo sabe onde todo mundo morra, o estado controla todas permições de construção, ...
Não me sinto nem o mínimo menos livre. Ao contrario, liberdade não é ígual à anarquía.
Liberdade é poder andar não rua sem medo de bala, por isso, precisa polícia, liberdade é construir uma casa e não ter que temer chuvas, por isso é preciso controle de construção, liberdade é conseguir pagar o aluguél todo mês, por isso é preciso um sistema social.
Mesmo que pode parecer muito burocrático ou totalitário, na realidade não é. A burocracia no Brasil é dez vezes mais assustador do que aqui na Bélgica.
Maioria dos brasileiros não vão debater o fato que não se pode construir casas ilegais no meio da amazônia, destruindo floresta. Se o brasileiro consegue captar esta ideia, porque é então que não todos concordam que em áreas frageis não se pode também não? Afinal isto é muito mais perigoso no curto prazo para os próprios moradores do arredor. Isso não é extremamente asocial? Colocar em risco as casas de pessoas que construiram de jeito certinho por ocupação de terreno ilegal, porque é possível e barato.
A escolha entre controle maior e deixar acontecer disastres em que morrem tantas pessoas não é uma escolha segundo mim, belga. O governo tem o dever simplesmente de se preocupar de todos seus cidadões e de fazer medidas impopulares pro bem de todos. O cidadão tem que ter a responsabilidade de não impôr um risco desses no vizinho dele. E abrir a mão para construção ilegal, pode parecer um bem de curto prazo pro pobre, mas todo mundo sabe que não é do jeito que foi feito.
Entendo os problemas que o Brasil enfrente e eu sou o último a acreditar que o prefeito de Rio vai acabar com as favelas antes da copa. Mas existe um meio termo entre branco e preto.
Porque é que o governo não simplesmente manda fazer um mapa com zonas proibidas em que nenhuma construção é tolerada, e abre outros espaços (seguros) para qualquer construção. Típo favela, mas pelo menos num espaço seguro.
Tudo bem, não é a ideia de construir novas Cidades de Deus, afastadas do centro turistico ou comercial, concentrando todos os 'have-nots' num lugar perdido. A ideia é de integração dos moradores, e as instalações basicas deviam ser fornecidas pelo governo. Mas enfim, entendo também que isso é um custo enorme; até mais porque tem que dislocar muitas pessoas. Mas não sei se os impostos devem ser aumentados por causa disso.
Os impostos no Brasil já estão bem altos, me parece. Só que ficam meio obscuros e ninguém realmente sabe o quanto que ele paga. Porque é que os alugueis no Brasil são mais altos do que aqui na Europa? Porque é que aqui tem ensino de alta qualidade de graça enquanto no Brasil se paga uma fortuna para isso. Um exêmplo: faculdade na KU Leuven (no mesmo nível do que University of Oxford segundo pesquisa recente) custa 500 euros por ano. Será que seguiram demais o modelo capitalista dos EUA? É por isso que se discute tanto sobre a influência do estado como se fosse uma coisa tão doida? Nós não somos comunistas, nem socialistas, nem totalitários. Somos a terceira melhor democracia no mundo, depois da Finlândia e a Dinamarca segundo pesquisa recente. Controle mais rígido pro povo também justifica controle mais rígido pro mundo político.
Mas sim, temos um estado grande que controla muita coisa. Não chega a ser um big brother no entanto. E me sinto bem livre.
Não tenho medo que vai cair meu prédio, nem que vão morrer pessoas que eu amo por causa de chuva, neve, bala ou qualquer outra coisa.
http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM1416555-7823-DIRETORIA+DE+GEOLOGIA+FOI+CRIADA+EM+BLUMENAU+APOS+TRAGEDIA+EM,00.html
Um passo no caminho certo
:-)
permitam-me discordar do tom geral do texto.
se por um lado a evocação de uma sociedade baseada na efetiva implantação de uma espécie de contrato social com foco no respeito ao espaço público e nas normas do bem-construir — prevendo a necessária fiscalização pública e pelos pares — significa um salto civilizatório necessário em busca de uma também efetiva democracia, por outro lado, me parece que esta mesma evocação ignora uma situação social em que a luta de classes é ao mesmo tempo gritante e silenciosa. Gritante pois aprendemos a evocar a lei, a norma e o plano apenas quando tragédias ganham os jornais, mesmo que 90% das pessoas vivam em uma CIDADE ILEGAL. Silenciosa pois nada se faz além de chamar os especialistas a declararem ser necessário "respeitar as leis e normas".
O Brasil tem a legislação urbanística e ambiental mais avançada do mundo. Quantas cidades, porém, até hoje, foram ousadas o suficiente para desafiar as elites locais e expropriar as tantas propriedades ociosas que dia-a-dia denunciamos?
Evocar fiscalização e normatização, por si só, parece ser o mesmo que compactuar com uma sociedade aparentemente harmônica, na qual não há conflitos e na qual todos têm direito ao espaço público.
Não é o caso. Não estamos tratando com um "problema" cuja solução é técnica: trata-se de uma situação política relacionada com injustiça social. Esta só será sanada com a devida inversão de prioridades: combate às elites.
Já ouvi uma importante professora paulista de história da arquitetura dizendo que arquitetura não interessa e nem deve interessar às massas: os problemas da arquitetura são eminentemente elitistas demais e que qualquer tentativa do arquiteto de dialogar com a arquitetura autoconstruída seria bobagem, "anti-arquitetura". Parece-me que enquanto mantivermos tal cultura arrogante continuaremos a lamentar o desrespeito à lei.
Post a Comment