Sunday, October 31, 2010

o lado podre da convergência

Eu devia estar feliz que hoje o Brasil está elegendo sua primeira mulher presidente, continuando, quem sabe de forma um pouco mais combativa, as políticas públicas que fizeram do governo Lula o melhor desde JK.


Devia estar feliz também porque a se confirmar a vitória de Dilma Rousseff, ela vem acompanhada da derrota da direita mais arcaica, de Joaquim Roriz e Cesar Maia, e principalmente do neo-carola José Serra.


Mas da mesma forma que 1956-61 foram os “anos dourados”, temo que muito em breve teremos saudade do otimismo dos anos-Lula. E digo isto como quem descobre um amargo lá no fundo depois de engolir o que parecia doce. Explicando melhor, há anos digo em minhas andanças que o Brasil e os EUA estão em trajetórias convergentes (idéia confirmada pela The Economist). As desigualdades seguem aumentando aqui no norte com a renda do trabalhador estagnada a décadas (os anos 00 ainda vão ser conhecidos com a década perdida dos EUA), enquanto o Brasil cresce, distribui e aumenta a qualidade de vida da maioria da sua população.


Mas esta mesma teoria da convergência (trocadilho aqui com a famosa teoria da dependência que o príncipe FHC fez questão de renegar) volta agora a se afirmar como uma vingança. O pior dos EUA se revelou este ano de forma viva e agressiva na eleição brasileira. A direita, sem proposta e sem projeto, incapaz agora de sustentar seus velhos argumentos de que o bolo deveria crescer primeiro (Lula entrará para a história como o líder que derrubou esta velha falácia), apela para o que há de mais arcaico na sociedade brasileira: a hipocrisia de uma religiosidade de fachada. Sim porque tirando os 6% de neo-pentescostais e uma parte pequena dos católicos carismáticos que levam as regras da igreja a sério, ninguém dá a mínima para o que dizem Ratzinger ou o bispo de Guarulhos.


Mas bastaram as palavras “aborto” e “casamento gay” serem colocadas para todos os preconceitos de gênero, de classe e de cor virem a tona disfarçados de cristianismo.


O Brasil que se revelou nestas eleições é um país recalcado. A agressividade que lí nas mensagens mal escritas da internet e a intolerância de certos diálogos semi-privados (mas também semi-públicos) das redes sociais apontam para uma polarização digna de republicanos versus democratas. Vale lembrar que nos EUA esta polarização já acontece a tanto tempo que cidades inteiras (Austin onde eu vivo é uma delas) são território de um ou outro grupo. Quem pensa diferente que se mude.


Devíamos estar discutindo propostas. Agora que temos orçamento para melhorar as cidade, qual seriam as ações? Como usar os recursos do pré-sal para desenvolver mais energias renováveis? Todas as crianças estão na escola, como melhorar agora a qualidade e evitar a evasão na pré-adolescência? A partir de que ponto o bolsa-família deve dar lugar a incentivos para geração de renda sustentáveis? Quais as propostas reais para a violência urbana? Como exercer liderança na América Latina sem se tornar o “império do sul”? Como evitar que o Atlético passe sufoco todo ano? (ta bom, eu sei, nem tudo tem solução)


O fato é que o direito da mulher de planejar sua vida reprodutiva é fato consumado, os padres que se virem pra adaptar sua igreja aos novos tempos ou continuar tendo que responder `a pergunta da minha filha quando tinha 5 anos ao ver uma missa na televisão: porque só tem velhinhos ali?


O mesmo vale para o casamento gay. Se a família é mesmo tão importante (e eu defendo que sim), qual o argumento contra estender esta possibilidade pra todos? Afinal de contas, tanto o aborto quanto o casamento são direitos. Quem não gostar que não os exerça.


Em resumo, no meio de tantos avanços dos últimos 8 anos esta eleição representa claramente um retrocesso no discurso. Importar esta conevrsa da direita religiosa norte americana foi a pior herança que o triste José Serra podia ter deixado. Lula saiu maior de cada eleição que perdeu. José Serra sai desta muito menor do que entrou.


Oxalá Dilma ainda guarde mineiridade suficiente para manter os avanços sem botar lenha nesta fogueira moralista, movida a hipocrisia como gosta a igreja desde a inquisição.

6 comments:

Isadora said...

Adorei o neo-carola!!!!
E concordo com tudo.
Essa eleição foi doída, difícil, frustrante.
Beijo

Cláudio Luiz said...

O segundo turno foi mesmo lamentável. Mas que possamos comemorar muito logo mais. E que possamos debelar logo o atraso que o segundo turno trouxe por conta da mediocridade do serra, para avançar para estas boas políticas que você soube muito bem enumerar.

João Amaro Correia said...

o direito é um aborto? perdoe-me, mas e o direito do feto em viver?

espanto-me como os supostos 'progressistas' esbarram no mais atroz egoísmo.

Renata Malachias said...

Que alívio, Fernando! Um dos primeiros textos (sobre a eleição) que eu leio que é lúcido e crítico.

gabriel said...

segunda-feira passada Marilena Chauí encerreu ato pró-Dilma na faculdade de filosofia da USP. Em meio à sua fala, ela lembrou que recentemente Paul Singer esteve na Europa para apresentar as experiências de economia solidária em um encontro de partidos socialistas. Os presentes à comunicação de Singer declararam que o Brasil está ensinando a eles o caminho para um novo modelo de socialismo europeu, baseado no cooperativismo e nos programas de transferência de renda.

A fala de Chauí foi otimista demais, mas foi sem dúvidas bonita. E este pequeno momento de beleza é suficiente para deixar de lado toda a campanha arcaica a que assistimos. As elites importam tudo, até mesmo o comportamento neocon/tea party que está afundando os EUA.

Mas as políticas de transferência de renda — e permito-me aqui ser bastante otimista em relação a um governo que considero excessivamente tímido e comprometido com setores atrasados, como o do agronegócio... —, sobretudo o bolsa-família e o pro-uni, foram a sacada genial dos oito anos de Lula: criaram um dispositivo de segurança contra toda esta apelação medievalesca que surge justamente de um partido, como o PSDB, que se considera moderno e cosmopolita.

No início da década Renato Janine Ribeiro aparecia na TV comparando PT e PSDB: grosso modo, dizia que o primeiro fazia política com paixão e emoção, apelando ao sentimento; o segundo faria política com razão e frieza.

Parece que, neste ponto, mudamos um pouco.

Enfim: sempre fui crítico à timidez do governo Lula (isso sem entrar na crítica importante feita por gente como Chico de Oliveira). Agora estou momentaneamente otimista.

Humberto said...

só li agora, mas tá perfeito o texto.
foi dureza esse período eleitoral. Dureza.