O porquê das enchentes
Todo verão, a mesma coisa: chuva, inundações, desmoronamentos, desabrigados, mortes. Neste, que já entra no segundo mês, já foram mais de uma centena de mortos e milhares de desabrigados. Bilhões de reais, dinheiro público e privado, serão necessários para corrigir os danos materiais. Os números assustam, mas, na área chuvosa, que vai do Sul do México ao Norte da Argentina, temos o equivalente a um furacão Katrina todos os anos. Mais de mil mortos e mais de 100 mil desabrigados, todo ano. O fato é que por 500 anos lutamos contra a estação chuvosa na América Latina.
A causa? Importamos um padrão de urbanização dos nossos colonizadores ibéricos que é inviável no Brasil, onde a chuva anual varia de 1.000mm a 1.600mm. Em áreas populosas e urbanizadas, como o Sudeste brasileiro (80 milhões de habitantes), a chuva se concentra no verão, período em que chega a cair 300mm por mês e não é incomum 100mm em um único dia. Na região de Angra dos Reis, litoral fluminense, choveu mais de 400mm nos dois últimos dias de dezembro e no primeiro dia de janeiro. No entanto, nosso modelo de construção vem de lugares onde chove muito menos, e de forma regular: 400mm por ano em Madri; 500mm por ano em Lisboa. Aqueles terraços pavimentados de Sevilha ou de Lisboa são lindos e adequados para 50mm por mês, nunca para um lugar onde chove esta cota por hora.
As conversas sobre o tema sempre passam por aquilo que alguém deveria fazer. E esse alguém é sempre definido como o outro: o poder público, as autoridades, os da rua de cima. A expansão urbana desenfreada, a produção agrícola em larga escala: é importante perceber que a questão das enchentes urbanas passa tanto pelo poder público, pelas diretrizes de urbanização e gestão das águas, quanto por cada um de nós, em nossos pedacinhos de terra na cidade.
O manejo da água da chuva é público, mas a absorção residencial é um problema doméstico, privado. Com todos os quintais impermeabilizados, a municipalidade passa a controlar 100% do volume de água, mas só dispõe de 25% da área da cidade para tanto. Cada vez que chove 100mm (e isso tem ocorrido frequentemente), um quarteirão médio (100m x 100m, ou 1 hectare) recebe 100 mil litros de água. Se fôssemos segurar todo esse volume num piscinão, seria necessário um lote de 12mx30m, com profundidade de três metros – isso para cada quarteirão.
Para resolvermos parte do problema das enchentes urbanas, temos que entender que a questão da permeabilidade do solo é problema de todos; que precisamos promover uma mudança cultural: 1) na forma como o poder público trata o problema; 2) na forma como as pessoas se sentem envolvidas nele.
Em São Paulo, um volume gigantesco de água corre rapidamente para os vales dos rios Tietê e Pinheiros cada vez que chove forte. Em Belo Horizonte, os fundos de vale são inundados várias vezes ao ano, como ocorreu com a Avenida Tereza Cristina na noite do réveillon de 2008. Em Uberlândia, no Triângulo, a Avenida Rondon Pacheco vira um rio toda vez que chove mais de 50mm. Se parte dessa água tivesse sido absorvida ou pelo menos retardada por canteiros e áreas com pavimento permeável, a enchente poderia ter sido evitada. Cada metro quadrado de solo permeável devolve 1,6 mil litros por ano ao subsolo. Se cada lote urbano tivesse 10 metros quadrados de canteiros rebaixados, 80% da água da chuva anual seria retida e encharcaria devagar na terra, recarregando os lençóis freáticos e ajudando a manter a cidade mais fresca no dia seguinte, com o processo de evaporação.
Em junho de 2009, a Universidade de Michigan (EUA), em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e a PUC Minas, realizou um estudo para analisar a permeabilidade do solo no vale da Vila Acaba Mundo, constituída na bacia do córrego homônimo na capital mineira. Os cálculos feitos revelam conclusões assustadoras. À medida que a população de baixa renda vai melhorando de vida, as áreas intersticiais vão sendo pavimentadas, como o é na cidade formal. Isso ocorrendo, o volume de água que chega ao córrego será o dobro do atual e ela vai descer na metade do tempo, exatamente como ocorre em todas as avenidas localizadas em fundos de vale. Se não mudarmos essa lógica, a tragédia do réveillon em Angra dos Reis vai ser considerada pequena no futuro.